8 de fev. de 2022

TERRA EM TRANSE

 O que não provoca minha morte faz com que eu fique mais forte. [Friedrich Nietzsche]

A vida em movimento, Eduardo e eu convivíamos no mesmo corpo em harmonia, sua presença já não era estranha e o acordo de paz se fazia entre nós. No anonimato eu emprestava meu corpo para que White existisse por algumas horas entre quatro paredes com estranhos e como contrapartida ele não relutava mais para que meu eu mesmo reivindicasse o direito de existir no corpo em que nasceu.

Estranho? Caso de terapia? Distúrbio de personalidade?

Pode ser, mas acordos são acordos e se a paz estava selada entre as partes é o que importa, quem dita as regras é você.

A vida entre os dois ai bem, meu eu mesmo estava num momento profissional ascendente, atuando com capitação de recursos, o ano de 2020 havia iniciado com cerca de 300 mil reais captados para diferentes projetos. Três diretores, três grandes produções em andamento, temporadas em 18 cidades, viagens marcadas, seria um grande ano, até que...

 

11 de março de 2020

A Organização Mundial de Saúde – OMS declara a pandemia de Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2). Segundo o órgão, o número de pacientes infectados, de mortes e de países atingidos deve aumentar nos próximos dias e semanas.

Pandemia eu só tinha visto em filmes de ficção cientifica, livros de história ou casos nos quais envolviam ancestrais, como meu bizavô que vivenciou a gripe espanhola. Mas em 2020 com toda tecnologia, poder bélico e avanço cientifico, como poderia?

Com o passar dos dias as mortes foram aumentando, tomando proporções catastróficas em um cerco que se fechava e parecia próximo de nós dois cada vez mais.

 

18 de março de 2020

O Governo brasileiro determina fechamento de shoppings e academias na Grande SP para conter avanço do coronavírus. Os trabalhos foram interrompidos, pessoas conhecidas adoeceram, parentes de amigos foram internados, entubados e a morte virou notícia cotidiana de café matinal, almoço e jantar. Era preciso renegociar e assim criei um diálogo patético com minha consciência e Eduardo.

- Você precisa sair de cena...

- Eu vivo um risco diário.

- Mas não é letal.

- Seus trabalhos foram interrompidos, em breve você não terá renda.

- Eu reconheço, mas morrer na praia nunca esteve nesse plano. Há outra maneira.

- Pode demorar, até lá...

- Até lá você não tem escolha, Eduardo.

- Ok? Com a morte não há negociação. E dividir o mesmo espaço é confuso para nossa existência. Sua mente vai adoecer.

- Sairemos juntos dessa guerra!

Em abril removi todos anúncios online nos sites regionais. Naturalmente o medo da pandemia fez com que muitos clientes tivessem o mesmo senso de parar com programas, outros por sua vez agiam como se nada estivesse rolando e me procuravam querendo marcar um horário, mas sem sucesso.

Os meses foram passando, as mortes se multiplicando e fechando dígitos cada vez maiores, na contramão de um governo que anunciava um tratamento paliativo e mentiroso.

Passamos pelas fases vermelha, laranja, amarela, voltamos para a vermelha. E o tempo foi nos provando que nossa fragilidade era cada vez maior.

Depois de 120 dias retomei os três projetos com os quais havia iniciado o ano, mas dessa vez para o modo remoto, ou seja, tudo que seria feito presencialmente migrou para as telas de computadores e celulares. O desafio de coordenar três equipes diferentes se tornou imenso diante da minha capacidade, reuniões diárias, planilhas de custos revisitadas, compras online, cobranças constantes, renegociação de agendas, ensaios, embates com pessoas que se mostraram egoístas no meio do processo, habilidade para gerenciar crises, cursos de aperfeiçoamento, telejornais falando de mortes, uma rotinha que não me permitia desligar por um minuto.

E no quarto escuro do meu subconsciente Eduardo magicamente dormia o sono dos justos. E foi no sono profundo de White que meu eu mesmo começou a adoecer. A vida em telas me jogou diretamente na “modernidade liquida”, só que não mais no aspecto de conceito, mas agora de ação e realidade.

Desenvolvido pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman “Modernidade Liquida” diz respeito a uma nova época em que as relações sociais, econômicas e de produção serão frágeis, fugazes e maleáveis, como os líquidos. Uma vida em suspensão, vivida na superficialidade e fragilidade dos relacionamentos afetivos e sexuais, que também recaem em nossas personalidades moldável aos interesses do momento, como a vida de instagram e nos processo de Individualização, egocentrismo no qual a única palavra que vale é a “minha”.

Tudo era muito volátil e cansativo e o corpo foi o primeiro a responder com picos de estresse, crises de ansiedade, insônia, choros descontrolados, incertezas do amanhã e melancolia, no fundo uma grande vontade de sumir no quarto escuro. Mas antes que que eu pudesse entrar veio uma notícia.

08 de dezembro de 2020

O Reino Unido dá início a vacinação contra o covid-19, o Brasil só começaria em 2021, mesmo assim uma luz se acende no quarto escuro.

- Acordou?

- Hey, te prepara, ta chegando o momento de voltar...

 

O garoto errado

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo seu comentário!