5 de fev. de 2014

ODOR DE FEMINA, O TERCEIRO SEXO

Eu não sentia nada. Só uma transformação pesável.  Muita coisa importante falta nome. [ Guimarães Rosa ]

O poder de observar sem ser observado foi dado a todos mortais, porém poucos apreciam esse dom. Numa cidade como São Paulo, as pessoas estão mais preocupadas em acelerar o passo do que contemplar a natureza. Sobretudo quando essa natureza é alterada e mudada bruscamente, quando curvas masculinas tornam-se femininas, quando cabelos que poderiam ser estilo militar e tornam-se esvoaçantes e provocantes. E se de fato Deus fez a mulher da costela de Adão achando que supriria a necessidade do homem mortal, ele se enganou feio, pois um terceiro sexo surgiu sem pedir permissão para existir, mas o fato é que ele existe.

Entre duas a três vezes na semana eu preciso fazer mercado para abastecer minha dispensa e como há um shopping com supermercado no subsolo próximo ao meu prédio, eu acabo indo até lá. Obviamente por se tratar de uma das ruas mais conhecidas e caras da região da Paulista, a Frei Caneca comporta inúmeras lojas, bares e também um shopping, o Shopping Frei Caneca, que acaba sendo um ponto de encontro para diferentes tribos como,  patricinhas, mauricinhos, nerds, gays mais abastados com suas roupas de grife e claro, as travestis com pedigree. Quanto a esse último grupo é impossível ficar indiferente a elas, todas muito bem produzidas, equilibradas em seus escarpan e vestidas com roupas de corte refinado,  que diferentemente de uma imagem vulgar contrapõe para um perfil sofisticado e elitizado.

E assim como a prostituição apresenta nichos e escalas monetárias, as travestis de São Paulo também tem essa escala. Montadas no silicone, com apliques de cabelos longos e lisos, botox na boca, nas maças do rosto, roupas de grife e seus Iphones, elas desfilam em pequenos grupos pelo shopping, olhando sempre na linha do horizonte, chegando a desbancar muitas mulheres casadas de aparência cansada para seus maridos. Tamanha é feminilidade e curvas delineadas, que alguns desses homens as olham e as desejam com o “rabo de olho”.
Uma delas comanda a alcateia de lobas. Alta, loira, pele levemente bronzeada, boca carnuda, tem cabelos longos, lisos e loiros e um corpo com curvas vantajosas. Seu nome eu não sei, mas a vejo transitando quase sempre escondidas em seus grandes óculos escuros, como uma socialite. Essa travesti era bancada na Itália, fez muita grana lá e comprou um apartamento aqui na Frei. Disse um colega durante um almoço no shopping há muito tempo atrás, quando eu ainda fazia temporadas na capital. Nunca me esqueci disso, pois me lembro que eu tentava ver a feição da “moça”, mas não conseguia, primeiro por que ela não olhava as pessoas nos olhos, passava sempre rápido e segundo, pelos óculos escuros que usava sempre.

Meses depois, vejo-me vizinho dela, afinal moramos na mesma rua. Uma outra “menina” que integra o seleto grupo é uma travesti visivelmente mais nova, de corpo escultural e nariz desenhado por um discípulo de Ivo Pitangy, ela  apresenta uma  feição bem feminina e constantemente caminha junto da loira altiva, porém, aparentava ser muito mais bonita de se admirar, sobretudo quando ela usa roupas de ginástica e pratica corrida aos sábados pela manhã.

Vê-las convivendo naquela região me fazia lembrar do filme Priscila a Rainha do Deserto, onde  duas drag queens e uma transexual são contratadas para realizar um show em Alice Springs, uma cidade remota localizada no deserto australiano. Eles partem de Sydney a bordo de Priscilla, um ônibus e a partir daí muitas coisas acontecem. Vi esse filme quando era criança e lembro que o mais surreal era que a cidade absorvia o fato de ver homens travestidos de mulheres e de alguma forma aquilo acabava sendo natural, sobretudo pelo exagero das drag queens ultra coloridas no meio do deserto.

É também engraçado ver que em uma cidade como São Paulo há pontos de conversão, onde em algumas regiões gays, lésbicas e travestis são aceitos normalmente, mas ainda sim há a ignorância e a incompreensão de muitos que perseguem, agridem e até matam outro ser humano por ele ser diferente. Espero que essa mentalidade mude, será uma batalha dura até lá.

Priscilas ou não, o fato é que as travestis da Frei Caneca exercem um tipo de poder em quem convive por lá, talvez pelo poder aquisitivo ou pela naturalidade em que acreditam ser mulheres de carne e osso. Ao observa-las eu fico me perguntando: O que elas precisaram fazer para chegar até aquele patamar? Embora seja algo reservado somente a elas era difícil não admitir que houve uma mutilação contra o próprio corpo, pois a busca pela semelhança feminina foi grande e não menos dolorida.

Houve um dia em que sem esperar vi o rosto da comandante do bando, seus olhos eram mais fundos, abertos, e sua sobrancelha tinha um desenho arcado, muito para cima, deixando-a com algo muito artificial no rosto, talvez por isso dos óculos escuros. Usando uma expressão de Machado de Assis, eram olhos de ressaca.

De fato a prostituição nos muda, tira pedaço a pedaço da nossa essência e como um produto qualquer, nós mudamos de rótulo, mudamos de forma, alteramos nosso sabor, nossa cor... a ponto de um dia não se reconhecer mais no espelho. Ser travesti talvez tenha um vazio maior, um oco mais profundo, pois a necessidade de mudança é grande. E diferente de mim que mutilo minha alma, elas mutilam o corpo em busca de uma perfeição que talvez nunca venha.

O garoto errado
garotoprivado@hotmail.com


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