Eu não sentia nada. Só uma transformação pesável. Muita
coisa importante falta nome. [ Guimarães Rosa ]
O poder de observar sem ser observado foi dado a todos
mortais, porém poucos apreciam esse dom. Numa cidade como São Paulo, as pessoas
estão mais preocupadas em acelerar o passo do que contemplar a natureza.
Sobretudo quando essa natureza é alterada e mudada bruscamente, quando curvas
masculinas tornam-se femininas, quando cabelos que poderiam ser estilo militar e
tornam-se esvoaçantes e provocantes. E se de fato Deus fez a mulher da costela
de Adão achando que supriria a necessidade do homem mortal, ele se enganou feio,
pois um terceiro sexo surgiu sem pedir permissão para existir, mas o fato é que
ele existe.
Entre duas a três vezes na semana eu preciso fazer mercado
para abastecer minha dispensa e como há um shopping com supermercado no subsolo
próximo ao meu prédio, eu acabo indo até lá. Obviamente por se tratar de uma
das ruas mais conhecidas e caras da região da Paulista, a Frei Caneca comporta inúmeras
lojas, bares e também um shopping, o Shopping Frei Caneca, que acaba sendo um
ponto de encontro para diferentes tribos como, patricinhas, mauricinhos, nerds, gays mais
abastados com suas roupas de grife e claro, as travestis com pedigree. Quanto a
esse último grupo é impossível ficar indiferente a elas, todas muito bem
produzidas, equilibradas em seus escarpan e vestidas com roupas de corte refinado, que
diferentemente de uma imagem vulgar contrapõe para um perfil sofisticado e elitizado.
E assim como a prostituição apresenta nichos e escalas
monetárias, as travestis de São Paulo também tem essa escala. Montadas no
silicone, com apliques de cabelos longos e lisos, botox na boca, nas maças
do rosto, roupas de grife e seus Iphones, elas desfilam em pequenos grupos pelo
shopping, olhando sempre na linha do horizonte, chegando a desbancar muitas
mulheres casadas de aparência cansada para seus maridos. Tamanha é feminilidade e curvas
delineadas, que alguns desses homens as olham e as desejam com o “rabo de olho”.
Uma delas comanda a alcateia de lobas. Alta, loira, pele levemente bronzeada, boca carnuda, tem cabelos longos, lisos e loiros e um corpo com curvas vantajosas. Seu nome eu não sei, mas a vejo transitando quase sempre escondidas em seus grandes óculos escuros, como uma socialite. Essa travesti
era bancada na Itália, fez muita grana lá e comprou um apartamento aqui na Frei.
Disse um colega durante um almoço no shopping há muito tempo atrás, quando eu
ainda fazia temporadas na capital. Nunca me esqueci disso, pois me lembro que
eu tentava ver a feição da “moça”, mas não conseguia, primeiro por que ela não olhava
as pessoas nos olhos, passava sempre rápido e segundo, pelos óculos escuros que
usava sempre.
Meses depois, vejo-me vizinho dela, afinal moramos na mesma
rua. Uma outra “menina” que integra o seleto grupo é uma travesti visivelmente
mais nova, de corpo escultural e nariz desenhado por um discípulo de Ivo Pitangy, ela apresenta uma feição bem feminina e constantemente caminha junto da loira altiva, porém, aparentava ser
muito mais bonita de se admirar, sobretudo quando ela usa roupas de ginástica e pratica
corrida aos sábados pela manhã.
Vê-las convivendo naquela região me fazia lembrar do filme Priscila
a Rainha do Deserto, onde duas drag
queens e uma transexual são contratadas para realizar um show em Alice Springs,
uma cidade remota localizada no deserto australiano. Eles partem de Sydney a
bordo de Priscilla, um ônibus e a partir daí muitas coisas acontecem. Vi esse
filme quando era criança e lembro que o mais surreal era que a cidade absorvia
o fato de ver homens travestidos de mulheres e de alguma forma aquilo acabava
sendo natural, sobretudo pelo exagero das drag queens ultra coloridas no meio
do deserto.
É também engraçado ver que em uma cidade como São Paulo há
pontos de conversão, onde em algumas regiões gays, lésbicas e travestis são
aceitos normalmente, mas ainda sim há a ignorância e a incompreensão de muitos
que perseguem, agridem e até matam outro ser humano por ele ser diferente.
Espero que essa mentalidade mude, será uma batalha dura até lá.
Priscilas ou não, o fato é que as travestis da Frei Caneca
exercem um tipo de poder em quem convive por lá, talvez pelo poder aquisitivo
ou pela naturalidade em que acreditam ser mulheres de carne e osso. Ao observa-las
eu fico me perguntando: O que elas precisaram fazer para chegar até aquele patamar?
Embora seja algo reservado somente a elas era difícil não admitir que houve uma
mutilação contra o próprio corpo, pois a busca pela semelhança feminina foi
grande e não menos dolorida.
Houve um dia em que sem esperar vi o rosto da comandante do
bando, seus olhos eram mais fundos, abertos, e sua sobrancelha tinha um desenho arcado, muito para cima, deixando-a com algo muito artificial no rosto, talvez por isso
dos óculos escuros. Usando uma expressão de Machado de Assis, eram olhos de
ressaca.
De fato a prostituição nos muda, tira pedaço a pedaço da
nossa essência e como um produto qualquer, nós mudamos de rótulo, mudamos de
forma, alteramos nosso sabor, nossa cor... a ponto de um dia não se reconhecer
mais no espelho. Ser travesti talvez tenha um vazio maior, um oco mais
profundo, pois a necessidade de mudança é grande. E diferente de mim que mutilo minha alma, elas mutilam o corpo em busca de uma perfeição que talvez nunca venha.
O garoto errado
garotoprivado@hotmail.com
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