22 de fev. de 2022

DEIXE IR

Como dizer adeus pra alguém que você nunca imaginou sem? Eu não disse adeus. Não disse nada. Apenas fui embora. [Caio Fernando Abreu]

Conheci Alan em 2011, quando Eduardo ensaiava aparecer em minha vida. Era final do ano, estávamos em um churrasco de um amigo em comum. Alan era alto, moreno, cabelos e olhos pretos, porte médio, coxas grossas, sorriso bonito, voz máscula, fazia a linha discreto e antissocial, mas era só tipo, porém eu só iria descobrir depois. Na época ele namorava um cara antipático e ficamos só nos cumprimentos. Mas naquele dia o achei um cara interessante, porém como tinha em mente que seria um encontro para nunca mais, fiquei na minha.

Os meses se passaram e para minha surpresa o encontrei mais duas ou três vezes em eventos do mesmo amigo em comum. Ficamos timidamente em rápidas trocas de olhares, mas não passava disso. Nessa época eu já me tolhia focado em Eduardo, tive anos intensos de trabalho, carteira fixa de clientes e pouco tempo para vida privada.

Em 2014 retornando de São Paulo para um contrato de trabalho em outra cidade, encontrei Alan nos aplicativos de rede social, entre uma curtida e um comentário, começamos a conversar,  na trocamos algumas impressões e rolou o primeiro encontro no cinema. Não recordo qual filme assistimos, mas depois esticamos para seu apartamento e foi lá que rolou a primeira transa.

O encaixe foi de primeira, nos beijamos e deslizamos nossas mãos degustando cada momento, foi um encaixe bom, gostoso e quase que perfeito, pois os corpos não se repulsavam, mas se atraiam e se envolviam com quem se conhecesse a muito tempo. Diferente do sexo casual com crushs e clientes, o sexo com Allan foi com pegada de namorado. Uma curiosidade é que ele preferia ser ativo, talvez como afirmação, pois seu porte físico fazia o estilo macho alfa, mas na cama, além de um belo par de coxas, ele tinha uma bunda muito suculenta. Naquela noite fui passivo porque Allan quis conduzir assim, mas não deixei aquela bunda intacta sem umas boas linguadas.

Foi o primeiro encontro no qual me senti envolvido de verdade, depois de tantos anos recluso e focado como GP. Depois daquela sensação gostosa de ter feito amor e transado com alguém que havia mexido com minhas bases, veio o julgamento interno. Como levar isso adiante sendo garoto de programa?

Infelizmente eu não soube e acho que o Alan também não; mesmo ele não sabendo de Eduardo. Sem terminar frases que denotassem um compromisso no modelo padrão, assim construímos uma espécie de namoro onde nos encontrávamos de tempos em tempos, passávamos alguns dias juntos e depois nos separávamos, mantendo curtos diálogos por redes sociais. Era estranho porque não era um amor idealizado de comercial, mas livre, como fases da lua.

Com o tempo fomos conhecendo a intimidade um ao outro e nos soltando mais no sexo. Houve um dia em que fui ativo com Allan, penetrar aquele homem másculo, coxudo e bundudo me fez pirar. Mas com o tempo saquei que Alan tinha uma pegada mais gouine, ou seja, sexo sem penetração, mas que curte beijos, toque e carícias. Mesmo assim ele insistia em querer me penetrar, mas nem sempre ia até o fim. Allan era um homem carinhoso com cara de bravo, adorava super-heróis e colecionava diversos deles em diferentes escalas. Em seu quarto haviam estantes repletas de Superman, Homem Aranha, Batman, colchas, toalhas e almofadas temáticas.

Além de colecionador era bom anfitrião, bom cozinheiro, churrasqueiro e tinha bom gosto para decorar a casa, gostava de dormir abraçado (algo que me incomoda bastante) e roncova. Esse combo definitivamente era seu calcanhar de aquiles, hehehe. Considerando ser uma noite a cada encontro, eu relevava feliz.

Me dei conta do nosso envolvimento quando tivemos um natal juntos, no qual passei com sua família e a amigos, dormimos juntos e no dia 25 após o café da manhã voltei para casa. Ao sair da garagem e ver a imagem de Alan se distanciando pelo retrovisor me dei conta que estávamos dando uma passo importante. Essa ficha me fez retroceder, embora minha relação com Alan fosse de carinho, tesão e amizade, minha vida dupla como Garoto de Programa seria um problema caso fosse consenso um relacionamento.

O fato é que nem eu e nem ele tivemos iniciativa, não partiu de ninguém cobrar uma resposta, fazer uma declaração ou chegar com um pedido de namoro. Nada, absolutamente nada. Medo? Insegurança do que queríamos um com o outro? Penso que sim, fomos covardes. As juras de amor ou desejo só saiam nos encontros ao vivo e num tom baixo de voz.

O tempo passou e ficamos nos acompanhando por rede social. Certo dia Alan publicou que num exame de rotinha havia descoberto um câncer benigno. Como bom exibicionista relatou todo o processo até o final do tratamento, que tinha sido um sucesso.

Meses depois Alan anunciou que iria se mudar para Brasília, para assumir um novo cargo na empresa. Em nossas últimas conversas antes da viagem Alan disse saber de Eduardo e confessou que queria ter falado comigo há mais tempo. Envergonhado e com medo do julgamento me limitei a confirmar, mas fui surpreendido por sua admiração. Expliquei que esse era um dos motivos para me envolver em um namoro com ele, tinha medo de ferir seus sentimento se soubesse da minha condição como GP.

Alan foi extremamente carinhoso, disse que não mudaria em nada, que entenderia e me respeitaria.

30 de dezembro de 2019

... [Alan comentando foto em status]

-Tão lindo...

- pra combinar com meu crush.

-Não quero ser seu crush. Queria ser seu namorado.

-Eu aceito, hein, mas estamos longe, ficaria complicado para ambos. Meu carinho e sentimento por você é eterno.

A conversar se estendeu para uma leve discussão na qual Alan me acusou de não querer nossa relação. Eu pelo meu lado argumentava que faltava empenho dos dois. E Alan arrematou.

-Eu sempre quis namorar você. Sempre.

Em março veio a pandemia e o que já era distante ficou mais. Todos tentando se proteger reclusos em seus homeoffices. Até que Alan publicou que havia contraído covid e estava em isolamento. Não tínhamos vacina ainda, então o covid parecia uma roleta russa no qual saia na frente quem tinha menos idade e melhor condição física. Acompanhei a evolução do quadro de Alan pelas redes e felizmente ele ficou bem.

 

3 de fevereiro de 2020

... [Alan comentando foto em status]

-Meu príncipe. Eu gosto tanto de você.

-Eu também amo você.

-A gente tinha que ficar juntos

- pra combinar com meu crush.

 

20 de fevereiro de 2020

Queria te falar uma coisa. Rs

-Diga...

-Eu fui pedido em namoro. Achei melhor te avisar. Porque as vezes trocamos umas mensagens carinhosas. Acho que você me entende.

-Sim, entendi. Sem problema, lindão. Se você ta feliz isso me conforta.

- Obrigado lindo. Você continua sendo meu number one. Pena que você não acredita.

- Você também o meu. Eu amo você e quero seu bem.

-Eu também. Você é o homem mais completo. Mais incrível que já conheci.

-Eu entendo nossas limitações por agora.

 

6 de setembro de 2020

Alan escreve contando duas novidades, a primeira é que devido a pandemia foi transferido novamente para nossa cidade e ficaria até fevereiro de 2021. A segunda novidade era que estava solteiro e queria me ver.

Ensaiamos tantas datas e só conseguimos nos ver no dia 28 de outubro. Alan estava mais lindo do que nunca, corpo malhado, cabelos mais longos e mais sério do que o habitual. A cada beijo dava para sentir sua respiração e sua pegada mais forte. Alan insistia em ser ativo, algo que combinava com seu porte estilo parrudo malhado. Mas tinha uma bunda que me deixava louco, porém quase intocável. Foi uma noite especial, fizemos amor e depois adormecemos abraçados.

Depois daquela noite continuamos a nos falar por rede social. Se antes nos ver presencialmente, com a pandemia isso ficou pior. Alan havia sumido das redes, sem postagens recentes até que derrepente, vejo uma foto sua nos status, acamado, abatido e com uma sonda no nariz. Ele olhava para câmera com olhar triste e com um brilho baixo.

16 de fevereiro de 2021

Era uma postagem na qual Alan se mostrava internado, uma recaída do câncer que havia tratado tempos atrás. Chamei-o no Messenger, conversamos e me dispus a visita-lo assim que molhorasse. Passei alguns dias monitorando e conversando com Alan, cobrei de permissão para ir visita-lo

- Oi mor, poxa, não imaginei que estava passando por tudo isso. Desde já você está em minhas orações, tudo isso vai passar, tenha fora, você é e sempre será meu guerreiro. Cuide-se e se precisar de algo em que eu possa ajudar, saiba que estou por aqui. Amo você.

 

-Obrigado lindo. Pena que a gente se veja tão pouco (por culpa sua).

Ele adorava me culpar por isso e eu sempre argumentava, mas dessa vez eu cedi para não cansa-lo

-Eu sei mor, mas havendo tempo a gente corrige isso...Quando puder receber visitas me avisa.

 

23 de fevereiro

Escrevi para Alan

-Oi mor, como tá na recuperação? Tá melhor?

24 de fevereiro

Alan respondeu

É bem lenta

-Mesmo lenta ta caminhando, isso que importa. Logo você estará novo em folha, meu bebezão guerreiro.

 

19 de março de 2021

Eu escrevo para Alan

-Oi meu lindão, como ta meu herói? Passando para deixar um beijão e um abraço apertado.

 

23 de março

Ao acordar e pegar o celular na cama fico ATONITO. Vários comentários de condolências na foto de Alan, ele havia falecido... Uma angustia me invadiu, acessei todos comentários procurando montar um quebra cabeça. Fui direto em nossas mensagem e do outro lado nenhum sinal...

Precisei de um dia todo para me refazer. Em conversa com um amigo em comum ele me explicou que Alan teve queda de imunidade devido ao covid e em janeiro precisou fazer uma nova cirurgia, pegou uma infecção que se generalizou, sem imunidade os remédios não faziam mais efeito.

Foi como levar um soco no estomago, derrepente eu não o veria mais, não conversaríamos mais, não nos abraçaríamos mais, nem poderemos nos beijar. Foi uma dor oca, sem lágrimas, mas de grande frustação pelo que deixou de ser. Em muitos dias me pego arrependido de não ter segurado sua mão e ter vivido nosso namoro. Já tive a fase de me culpar, de te culpar e de dividirmos a culpa.

Também sou grato pelo que vivemos. Mesmo sem tê-lo ao meu lado, pude lhe dizer “Eu amo você”. Você foi e será meu eterno amor. E espero um dia poder te reencontrar. As vezes acho que é pouco demais as histórias que passamos aqui, por isso espero te reencontrar. Mas a esperar dói tanto...

 

O garoto errado

16 de fev. de 2022

O ENFORCADO

 Os suicidas, mesmo os que planejam a morte, não querem se matar, mas matar a sua dor.” 

[Augusto Cury]

Quando conheci Felipe foi algo muito rápido e intuitivo. Na época eu havia aberto o grupo White Boys visando incluir mais garotos da região. Logo de cara percebi que Felipe reunia características bem diferentes dos demais. Reservado, centrado e super discreto, ele não se misturava como os demais garotos.

Rolou uma identificação entre meu lado nerd e metódico com o lado reservado e centrado de Felipe. Resolvi traze-lo para mais perto e coloquei ele em contato com Caio e Lucas. Na época tínhamos uma carteira forte e fixa de clientes, entre eles o Doutor X que era muito generoso com todos.

Como prova de minha lealdade a Felipe, apresentei-o ao Senhor X e juntos passaram uma tarde em um motel da cidade. A partir dai Felipe esteve mais próximo e me permitiu entrar um pouco em sua intimidade. Passamos a atender juntos outros clientes, como um importante promotor de São José dos Campos e nessas idas e vindas ele me confidenciou o desejo encerrar sua carreira como garoto de programa para se dedicar a um negocio próprio e também quitar o apartamento que havia comprado com sua mãe, cheguei a conhecer o imóvel por hora, era numa área nobre da cidade.

Falei que tudo daria certo e assim como ele eu também tinha objetivos ambiciosos. Um dos últimos trabalhos juntos, foi quando fomos a São Paulo, junto com Caio e Lucas para um ensaio fotográfico com locação bancada por Senhor X [ sempre generoso ]

Naquela tarde, enquanto todos estavam eufóricos e desinibidos para as fotos, Felipe era o mais quieto e introspectivo. Era difícil saber o que se passava em sua cabeça. Na época ele estava fora do corpo padrão, fazia o estilo parrudo, com rosto de traços másculos e delicados, membro grande e volumoso, coxas grossas, era capaz de levar qualquer cliente ao êxtase.

Fizemos fotos em grupo e individuais, uma delas foi proposta por mim, mostrava os quatro rapazes nus, de costas lado a lado, com a mão na nádega do outro.  A foto ficou tão artística e bonita que despertava as mais diferentes sensações, foi copiada posteriormente pelo grande site meninos online.

Depois desse ensaio Felipe encerrou sua carreira, excluiu todos anúncios, se especializou em confeitaria, abriu seu próprio negócio, fez nome na cidade, deu entrevistas, saiu em matérias de jornais, começou a cuidar do corpo, tornou-se um homem escultural e assediado nas redes sociais. Éramos amigos de rede social, mas trocávamos poucas palavras, o assunto garoto de programa nunca foi tocado. Tudo ia bem, até que em março de 2021 acordo com a notícia que Felipe foi encontrado enforcado próximo a uma ciclovia.

Rapidamente sua rede social foi enfestada por mensagens de condolências, muitas pessoas se perguntando porque. Em contato com um amigo em comum soube que Felipe estava em depressão profunda pelo término de um namoro e que por esse motivo havia se enforcado.

Fiquei tão abalado, reflexivo sobre a vida, a gente corre tanto atrás de coisas materiais e a vida se torna tão pequena e frágil em um momento de surto.

Pensei muito na coragem de Felipe em optar pelo enforcamento. E refleti sobre como ele teria a sentido, se no momento em que a corda apertou seu pescoço e cortou a passagem do ar ele teria se arrependido. Se quando a solidão invadiu seu coração e ele decidiu acabar com tudo ele tentou hesitar. Morrer por enforcamento é tão agoniante quanto morrer afogado ou de trauma. Me restava pesquisar, surpreendentemente descobri que o enforcamento é a forma mais comum de suicídio no mundo, representando quase metade dos casos, embora com mais prevalência no sexo masculino.

Fenômenos Apresentados Durante o Enforcamento

Durante o enforcamento ocorrem 03 fenômenos que se divide em período inicial, segundo período, e terceiro período.

O período inicial consiste no momento em que o corpo, abandonado e sob a ação do seu próprio peso, leva, pela constrição do pescoço, à sensação de calor, zumbidos, sensações luminosas na vista e perda da consciência produzida pela interrupção da circulação cerebral.

Após esse momento se inicia o segundo período que se caracteriza pelas convulsões e excitação do corpo proveniente dos fenômenos respiratórios, pela impossibilidade de entrada e saída de ar, diminuindo o oxigênio e aumentando o gás carbônico; associa-se a estes fenômenos a pressão do feixe vasculo-nervoso do pescoço, comprimindo o nervo vago.

E por fim ocorre o terceiro período, que é o momento em que surgem os sinais de morte aparente, até o aparecimento da morte real, com cessação da respiração e da circulação.

https://amandazanetin.jusbrasil.com.br/artigos/308245263/medicina-legal-conceito-de-enforcamento-e-seu-historico-ao-longo-dos-seculos

Senti muito por Felipe, não éramos íntimos, eu não sabia muito sobre sua vida e não fui nem de longe seu melhor confidente, mas juntos dividimos algo que só a prostituição nos dá, a coragem para nos expor ao risco e ao julgamento humano. Receio que as mortes por suicídio nunca encontrem a paz desejada. Talvez Felipe esteja vagando e ainda leve tempo para encontrar o que buscava. E meu auxilio de agora em diante será interceder por ele em minhas preces.

 

O garoto errado

12 de fev. de 2022

MÁQUINA DO TEMPO

 “Todos nós temos nossas máquinas do tempo. Algumas nos levam pra trás, são chamadas de memórias. Outras nos levam para frente, são chamadas sonhos”. [Jeremy Irons]

No final de 2020 a pandemia ainda oscilava com altos índices de infectados e hospitais com leitos ocupados. Diferente do Governo brasileiro, outros países deram início a vacinação buscando reestabelecer controle sobre o vírus e recuperação da economia. Enquanto no Brasil as negociações para compra de vacinas e início da imunização estava longe de começar. Decidi continuar recluso, controlar os impulsos e rememorar alguns fatos marcantes que tive como GP.

“Se for para entrar nessa que seja para ser um dos melhores no mercado” era meu mantra.

Em 2016, depois dos meus 15 minutos de fama que rendeu uma pequena fatia do mercado da prostituição em São Paulo, acabei pegando um contrato de trabalho na minha cidade natal e decidi voltar. Levando em paralelo a vida de executivo e GP, acabei abdicando de alguns clientes, que por sua vez pediam indicações de outros garotos.

Foi ai que veio a ideia de criar um grupo seleto de garotos para fidelizarmos uma carteira fixa de clientes. Assim nasceu o grupo White Boys, como um grande desejo em valorizar o mercado da prostituição local, ou seja, numa quase pacata cidade do interior.

Lucas, Daniel, Caio e Eduardo abriram a frente do projeto, o quarteto ficou conhecido por atendimentos em duplas, trios etc... com o tempo vi a necessidade de criar uma espécie de treinamento teórico sobre a profissão como GP. Surreal ou sem noção?

Até hoje eu não sei, mas queria que meus amigos tivessem algo a mais para oferecer. A primeira etapa era um treinamento teórico, ou seja, um book com regras e dicas que abordavam apresentação pessoal, dicas para negociação de valores para os programas, alertas de segurança, discrição e etiqueta.

A coisa foi ficando tão seria que eu me sentia o tio da lancha, mas sem lancha... Mas tinha como piorar...O papel de mãe ou grande irmão foi pegando. Os clientes começaram também a fazer essa imagem de Eduardo White e davam devolutivas boas e ruins.

Como o caso do Senhor X, um dos clientes mais ricos que o grupo teve e que por dois meses saiu de forma continua com todos garotos. Cada garoto tinha um sábado com ele para um programa que durava de 10 a 14 horas. Com o tempo a intimidade...

Certa vez ele soube que Caio havia trancado a faculdade por falta de pagamento e se propôs a quitar a dívida do garoto.

-Você tem certeza?

-Edu, vá com ele renegociar a dívida pra mim.

-Ok, posso ir e conseguir um desconto.

-Não precisa, peça o valor e repasse, meu escritório vai renegociar com eles.

No papel de irmão mais velho fui com Caio no escritório da universidade, levantei o valor da dívida e agendamos o dia da negociação. Dias depois o Senhor X tinha liquidado todas contas de Caio, que dava pulos de alegria. Meses o Senhor X nos levou a passeio para Maceió.

Houve também Sergio, nosso cliente excêntrico em todos os sentidos. Corpulento, sempre muito faminto por junk food, colecionador de filmes pornôs com direito a uma DVDteca e falante, muito falante, com frases finais terminadas em falsete. Sua marca era sempre fechar a história com um gemido ou uma pergunta afirmativa.

- SE TA ENTENNNDENNNDO?!

Ele gostava muito de sair comigo e com Caio e sempre nos rendia elogios. Eu e Caio sempre riamos das histórias e das trapalhadas desse cliente. Como da vez em que ele raspou toda porta do carro no portão da suíte do motel.

Houve também nosso cliente diretor de escola infantil, que sempre pedia que fossemos vestidos como garotos, jeans, camiseta, tênis escolar, ou bermuda, meião com tênis, camiseta e mochila.

Um a um, ele foi pedindo programa em duplas, trios e quarteto. Quanto mais fisionomia de garoto mais ele se fissurava.

Outro cliente era um promotor de justiça que era nosso cliente fixo e “passivão”. Ele curtia duplas e trio, mas quando tentávamos fazer uma DP – dupla penetração, ele fazia o famoso “cu doce” e recusava, mesmo cabendo até três rolas.

-Ai, tira, tira, eu não aguento.

Daniel e Caio riam disfarçadamente. No carro, quando saíamos do programa riamos escrachadamente da situação. “- Largo e fala que não cabe, hahahaha”.

Mas havia também reclamações. Dessa vez Carlos, um cliente de Taubaté havia reclamado do atendimento do Daniel, que havia aceitado marcar um programa com dor de garganta, mas recusou beijar o cliente. E assim, além de me preocupar com meus programas eu tinha que ficar monitorando os programas do resto do grupo, muitas vezes alheia a minha vontade.

O quarteto caminhou bem por meses, até que conheci Felipe, um gp que havia iniciado há pouco tempo na cidade. De bom porte, alto, corpo normal, olhos castanhos e pequenos, corte militar e rosto másculo, fazia o estilo discreto e sério. Em uma conversa senti que o rapaz era confiável, falamos sobre estudos, objetivos de vida e finalizei dizendo que o encaixaria em um programa em dupla ou trio pra ver se rolava uma parceria.

As vezes as palavras atraem coisas, certa tarde Senhor X veio para um programa de quatro horas com Caio, o caçula dos garotos, mas por algum imprevisto ele não poderia ficar as quatro horas marcadas, então coube a mim resolver.

- Du, o Caio saiu daqui agora pouco...

- E como foi?

- Foi ótimo, ele é um anjinho, mas ainda tenho tempo aqui e queria algo mais...

- Agora de última hora nem eu e os garotos conseguem ir... Mas derrepente posso indicar alguém... Tem um rapaz que quero acrescentar no grupo, porém preciso testar.

Rapidamente Senhor X se interessou e pediu mais detalhes, apresentei o perfil e as características de Felipe, e em dez minutos fiz contato, o mesmo estava disponível, passei algumas orientações e a situação estava resolvida. Senhor X foi um dos clientes que amou sair com Felipe, tanto que apadrinhou todo o grupo.

Foi um período divertido, estressante e de grande aprendizado. Felizmente temos mais histórias para rir do que para se lamentar. Foi o período também em que senti o grande peso de ser corresponsável por pessoas, garotos que assim como eu haviam entrado na prostituição e começavam a ter boas oportunidades financeiras de conquistar pequenas coisas e objetivos a partir da boa teia de relacionamentos que formamos.

Em 2018 decidi fechar o site White Boys, a vida começava ganhar outros contornos e foquei em outros objetivos profissionais, mas ainda continuando como Eduardo. Mesmo sem o site WB os laços de amizade com Caio, Lucas, Daniel e Felipe continuaram. Com alguns mantive contato por rede social, como Daniel, que se assumiu como GP anunciando seu rosto em ensaios sensuais, storys com viagens e sua nova cidade, Florianópolis. Na contracorrente Caio largou o trabalho como GP e focou em outros objetivos; Já Lucas sumiu do nosso radar, fora apadrinhado por um cliente fixo do qual ficou exclusivo. Esse cliente era tão ciumento que o proibiu de estabelecer contato com outros garotos, principalmente comigo e o manteve ao estilo prisioneiro com tornozeleira eletrônica, e por fim Felipe, com estilo empreendedor ele cumpriu sua promessa, juntou um capital, parou com os programas e montou um negócio próprio. Costumava acompanhar ele por matérias de jornais locais. Se tornou um homem bonito e de sucesso.

E sobre o Senhor X? Bem, ele continua se divertindo, mas dessa vez no mundo dos aplicativos de pegação gay e provavelmente com novos garotos, carne fresca, faz parte do negócio. Mas o lado bom é que mantivemos uma amizade de carinho e respeito.

Ganhamos muito dinheiro, viagens, pequenos presentes e reconhecimento em nossa pequena bolha no mercado do sexo. Mas tudo passa. Eu como Eduardo continuei na mesma estrada, agora mais dividido e solitário, já que não posso dividir o meu EU DUPLO com nínguem. Pouco tempo depois, percebi que não tinha a mesma graça, o grupo de certa forma me fazia ter um clã de amigos e deixava a profissão como GP mais divertida e menos solitária.

Seja como for, cada um a seu modo, estava feliz por ter tido amigos num meio tão julgado e canibal...Infelizmente a pandemia não nos livrou do pior e nos trouxe uma grande perda

Continua...

 

O garoto errado

 

8 de fev. de 2022

TERRA EM TRANSE

 O que não provoca minha morte faz com que eu fique mais forte. [Friedrich Nietzsche]

A vida em movimento, Eduardo e eu convivíamos no mesmo corpo em harmonia, sua presença já não era estranha e o acordo de paz se fazia entre nós. No anonimato eu emprestava meu corpo para que White existisse por algumas horas entre quatro paredes com estranhos e como contrapartida ele não relutava mais para que meu eu mesmo reivindicasse o direito de existir no corpo em que nasceu.

Estranho? Caso de terapia? Distúrbio de personalidade?

Pode ser, mas acordos são acordos e se a paz estava selada entre as partes é o que importa, quem dita as regras é você.

A vida entre os dois ai bem, meu eu mesmo estava num momento profissional ascendente, atuando com capitação de recursos, o ano de 2020 havia iniciado com cerca de 300 mil reais captados para diferentes projetos. Três diretores, três grandes produções em andamento, temporadas em 18 cidades, viagens marcadas, seria um grande ano, até que...

 

11 de março de 2020

A Organização Mundial de Saúde – OMS declara a pandemia de Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2). Segundo o órgão, o número de pacientes infectados, de mortes e de países atingidos deve aumentar nos próximos dias e semanas.

Pandemia eu só tinha visto em filmes de ficção cientifica, livros de história ou casos nos quais envolviam ancestrais, como meu bizavô que vivenciou a gripe espanhola. Mas em 2020 com toda tecnologia, poder bélico e avanço cientifico, como poderia?

Com o passar dos dias as mortes foram aumentando, tomando proporções catastróficas em um cerco que se fechava e parecia próximo de nós dois cada vez mais.

 

18 de março de 2020

O Governo brasileiro determina fechamento de shoppings e academias na Grande SP para conter avanço do coronavírus. Os trabalhos foram interrompidos, pessoas conhecidas adoeceram, parentes de amigos foram internados, entubados e a morte virou notícia cotidiana de café matinal, almoço e jantar. Era preciso renegociar e assim criei um diálogo patético com minha consciência e Eduardo.

- Você precisa sair de cena...

- Eu vivo um risco diário.

- Mas não é letal.

- Seus trabalhos foram interrompidos, em breve você não terá renda.

- Eu reconheço, mas morrer na praia nunca esteve nesse plano. Há outra maneira.

- Pode demorar, até lá...

- Até lá você não tem escolha, Eduardo.

- Ok? Com a morte não há negociação. E dividir o mesmo espaço é confuso para nossa existência. Sua mente vai adoecer.

- Sairemos juntos dessa guerra!

Em abril removi todos anúncios online nos sites regionais. Naturalmente o medo da pandemia fez com que muitos clientes tivessem o mesmo senso de parar com programas, outros por sua vez agiam como se nada estivesse rolando e me procuravam querendo marcar um horário, mas sem sucesso.

Os meses foram passando, as mortes se multiplicando e fechando dígitos cada vez maiores, na contramão de um governo que anunciava um tratamento paliativo e mentiroso.

Passamos pelas fases vermelha, laranja, amarela, voltamos para a vermelha. E o tempo foi nos provando que nossa fragilidade era cada vez maior.

Depois de 120 dias retomei os três projetos com os quais havia iniciado o ano, mas dessa vez para o modo remoto, ou seja, tudo que seria feito presencialmente migrou para as telas de computadores e celulares. O desafio de coordenar três equipes diferentes se tornou imenso diante da minha capacidade, reuniões diárias, planilhas de custos revisitadas, compras online, cobranças constantes, renegociação de agendas, ensaios, embates com pessoas que se mostraram egoístas no meio do processo, habilidade para gerenciar crises, cursos de aperfeiçoamento, telejornais falando de mortes, uma rotinha que não me permitia desligar por um minuto.

E no quarto escuro do meu subconsciente Eduardo magicamente dormia o sono dos justos. E foi no sono profundo de White que meu eu mesmo começou a adoecer. A vida em telas me jogou diretamente na “modernidade liquida”, só que não mais no aspecto de conceito, mas agora de ação e realidade.

Desenvolvido pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman “Modernidade Liquida” diz respeito a uma nova época em que as relações sociais, econômicas e de produção serão frágeis, fugazes e maleáveis, como os líquidos. Uma vida em suspensão, vivida na superficialidade e fragilidade dos relacionamentos afetivos e sexuais, que também recaem em nossas personalidades moldável aos interesses do momento, como a vida de instagram e nos processo de Individualização, egocentrismo no qual a única palavra que vale é a “minha”.

Tudo era muito volátil e cansativo e o corpo foi o primeiro a responder com picos de estresse, crises de ansiedade, insônia, choros descontrolados, incertezas do amanhã e melancolia, no fundo uma grande vontade de sumir no quarto escuro. Mas antes que que eu pudesse entrar veio uma notícia.

08 de dezembro de 2020

O Reino Unido dá início a vacinação contra o covid-19, o Brasil só começaria em 2021, mesmo assim uma luz se acende no quarto escuro.

- Acordou?

- Hey, te prepara, ta chegando o momento de voltar...

 

O garoto errado