Você deve estar em mim (em você, eu estou em você) [Haunted –
Beyonce]
Era um prédio na parte podre da cidade, um lugar fechado,
habitado por diferentes passados, havia sido igreja, quadra de escola de samba,
cinema pornô, entre outras finalidades que suas parede guardavam escondidas
sobre camadas de pinturas descascadas.
Eu havia entrado lá pela primeira vez pelas mãos de alguns
artistas de grupos e movimentos independentes, que haviam adotado o lugar para
revitalização cultural. Mas o passado daquele prédio parecia tão carregado pela
sua história que não havia vida ali. Mezanino de concreto bem precário, palco
maltratado e abaixo dele um imenso porão usado como camarim. As escadas que
davam acesso a ele eram estreitas, de cimento cru que esfarelava.
Um dos eventos que inauguraria aquele imenso prédio
transformado em teatro underground seria uma mostra de artes com diversas
expressões artísticas. Entre a programação fui convidado para fazer uma
performance intitulada “LABIRINTO DOS SENTIDOS”. Nelas usaríamos a salas do porão
como celas temáticas, onde cada performer seria aprisionado e criaria seu
ambiente numa espécie de calabouço aberto a visitação. As pessoas desceriam no
porão em turmas e pelos corredores iriam transitar e nos contemplar, mas não
poderiam nos tocar.
Eu não presumia o que poderia acontecer, mas me vi seduzido
a embarcar nesse projeto experimental. O Labirinto dos sentidos prometia ser
uma experiência sinestésica e única para expectadores e performes. Foram horas
de preparação até que o labirinto fosse aberto.
Ao descer as escadarias os expectadores encontraram um homem
acorrentado com mãos para traz e olhos vendados, passando por ele teriam
acesso a primeira sala que apresentava paredes
preenchidas por imagens da segunda guerra mundial e holocausto, seguida por
vídeos e trilha sonora que evocariam um universos agonizante por suas vitimas.
Continuando o passeio a terceira sala estava iluminada a luz de velas com uma
bela mulher vestida de com roupas intimas.
Eu estava a sua espera... Vem... Entra, fica aqui comigo.
Convidava a bela mulher. Seus olhos negros e sua boca
vermelha seduziam aos expectadores que passavam diante de sua porta, muitos
paravam para admira-la em sua beleza.
Vem... Fica comigo
Ela borrifava um delicado perfume no ar e pegava morangos
frescos para dar na boca de quem permanecesse diante de sua cela.
Quem continuasse a
partir daquele ponto era direcionado a uma pequena sala, um banheiro
envelhecido pelo tempo com ladrilhos verde musgo, luz negra, paredes manchadas
com tinta para tecido que sob a luz negra ficavam florescentes. Preso por cordas
ligadas do teto ao chão eu me encontrava, quase nu, emaranhado na teia de
tecidos e cordas, amarrado pelos braços, pernas e pescoço com parte do corpo
pintado. As cordas me davam movimentos somente dentro de minha cela, ao tentar
sair meu corpo era puxado para dentro.
Inicialmente eu diria um texto fragmento de Franz Kakfa,
intitulado “A Construção”, o texto falava de um ser preso em sua própria
condição se ser, uma espécie de casa e usava de diversas metáforas para falar
do inimigo que estava a espreita fora de sua casa, como um predador.
A intervenção tinha tempo marcado de 40 minutos, mas dada a
quantidade de expectadores para assistir a performance levou mais tempo do que
previmos, fome, sede, agonia, desespero por estar amarrado e desconforto
somaram-se a minha condição e então as palavra tornaram-se pesadas.
Era como se eu agonizasse de verdade preso num corpo, preso
as cordas, preso a uma cela, escondida num porão embaixo do solo, nos fundos de
um prédio abandonado em meio a uma parte deserta da cidade. Essa sucessão de
prisões me incomodou a tal ponto que o que eu já dizia não eram mais palavras
jogadas e sim um misto de lamento, em transe...
Junto aos meus lamentos uma outra atriz presa na ultima cela
dialogava comigo também em transe, batíamos em portas e janelas na busca por
alguma saída...
Após quase duas horas o porão ficou mais escuro, vazio...vazio...VAZIO... As luzes
se acenderam e a porta da minha cela se abriu totalmente. A equipe de produção
veio nos liberar, fui o último a sair devido as muitas cordas de tecidos que me
prendiam...E, num abraço eu apenas chorei...
Estava livre do calabouço...
O garoto errado.