6 de out. de 2014

LIBERDADE

"O maior obstáculo para eu ir adiante: eu mesma. Tenho sido a maior dificuldade no meu caminho. É com enorme esforço que consigo me sobrepor a mim mesma." [Clarice Lispector]

Mais de 100 dias se passaram desde que parei de fazer programas... Eduardo não faz mais parte do meu dia a dia, mas parte de sua melancolia habita dentro de mim, como cicatriz que demora abrandar suas marcas na pele.
Minha vida como garoto de programa não foi leve e repleta de agitação ou felicidade, por alguns momentos fui sim feliz e no que posso julgar pude satisfazer algumas necessidade materiais, mas com o tempo é um cotidiano que pesa e daí temos que ter eixo para encontrar um ponto de equilíbrio.  Eu de fato não vi o quanto distanciei de mim mesmo e me abandoei numa estrada... Caminhei para longe do garoto cheio de sonhos que um dia fui e hoje não consigo voltar ao que era. É a lei da vida.

O Garoto Errado ainda é constantemente procurado nas redes sociais, na caixa de e-mail e na caixa postal do celular (chip antigo). Há dias em que é difícil acordar no meu quarto e levantar da cama, mas é preciso tocar a vida, viver dia após dia e encontrar razões que não me façam olhar para traz e querer retomar a vida como Eduardo White.

A decisão de parar veio num momento de angustia, tristeza, esgotamento físico, sobretudo mental. Lembro-me de uma frase em um seriado sobre prostituição, que diz o seguinte: Nenhuma profissão provoca mais oposição, inspira mais preconceito e instiga mais polemica do que a prostituição... Mas nenhuma outra desperta tanta curiosidade. (O Negócio ).

De fato a curiosidade é o ingrediente essencial que permeia o fetiche em desvendar e experimentar algo novo, seja no sexo ou em qualquer terreno. O curioso por si só não sossega enquanto não vê, cheira, toca, e experimenta o que ele quer. Estar próximo de algo ou alguém que nos fascina é instigante. E por conhecer essa necessidade humana, Eduardo foi explorando cada vez mais esse elemento, mas também sofreu por ceder demais e muitas vezes o que era fascinante e encantador perdia a graça. A linha tênue entre deixar se  ver e ser visto é muito complexa, pois quando se trabalha com uma fantasia  nunca pode ir além do que a pessoa necessita, a dualidade e o desejo precisam ser alimentados, senão o encanto se perde.

As pessoas se perguntam se parei com os programas em nome de um grande amor, de uma paixão fulminante romanceada no velho clichê do cliente que se apaixona e tira sua “amada” da prostituição. Sim, eu me vi apaixonado por alguém, me vi envolvido pela história de um rapaz acometido por um câncer e tamanha era minha fragilidade, que me deixei enredar em seus dramas pessoais. Tolice! Ingenuidade! Burrice!
Ainda sim creio numa explicação plausível... Quando desejamos muito uma coisa, uma mudança que nós ajude na tomada de uma importante decisão, nós passamos a interpretar sinais que nos levem a isso. E foi isso que fiz...

No inicio, quando Eduardo surgiu, busquei apenas o material, quando Eduardo amadureceu, eu passei a viajar por lugares e com isso busquei êxito e reconhecimento profissional e quando por fim ele obteve o reconhecimento que desejei, busquei caminhos de fuga, quis recomeçar ainda vivendo em sua pele...
Em janeiro de 2014, mudei para São Paulo, montei apartamento em um dos lugares mais visados da cidade e decidi levar adiante meu planejamento em viver por mais um ano como Garoto de Programa. Por um tempo funcionou muito bem, trabalhei muito, consegui altos rendimentos, mas um profundo desanimo me abatia dia a dia. Minha rotina era cuidar do apartamento, frequentar academia, fazer mercado e estar sempre disposto para meus clientes. Eu mal conseguia dar um passeio pelo centro de São Paulo.

Lembro-me de um sábado, enquanto eu passeava com um amigo pelo centro da cidade, quatro clientes ligaram querendo programa, um deles ligou cerca de três vezes insistindo para que eu pegasse um taxi e voltasse para o apartamento. Eu havia saído para conhecer o Mercadão, Mercado Municipal de São Paulo e no intervalo de uma hora eu tive que remarcar três clientes e cortar o passeio pela metade. Naquele sábado eu atendi três clientes com intervalos de meia hora, só parei na noite de sábado esgotado e de certa forma infeliz por não conseguir ter amigos e me divertir. Eu olhava para aquele apartamento, para sua mobília sem personalidade, para o dinheiro conquistado em poucas horas e pensava... “Pra que tudo isso? Eu nem sei o que vou fazer”... Então eu quis voltar ao ponto de partida.

Marcelo parecia um sinal, algo em que eu poderia acreditar e antecipar uma decisão que seria tomada em janeiro de 2015, quando eu completaria um ano como garoto de programa na cidade de São Paulo. Ele apareceu como um suposto cliente para uma pernoite, nosso contato foi se aprofundando por e-mail, fotos, telefonemas, histórias... Por fim, dias antes de nosso encontro Marcelo adoeceu, foi internato, passou dias para ser diagnosticado com câncer. Da família do suposto rapaz, eu conheci pessoalmente e de forma muito rápida um primo que passou a intermediar alguns de nossos contatos  culminando em um breve encontro no qual ele foi entregar um presente de Marcelo, na ocasião marcamos no estacionamento de um Shopping. Muito nervoso o primo me cumprimentou, não olhou diretamente nos meus olhos e mal falou comigo.

Semanas se passaram, a situação se agravava até tornar-se surreal, amigos passaram a me alertar para um suposto golpe e por vezes eu pensava: Golpe para que? Eu não dei um centavo meu para Marcelo! Não havia dinheiro envolvido...

A mentira caiu por terra e a lucidez voltou, com os pensamentos menos bagunçados, eu tracei outra estratégia, fui frio e calculista. Como o primo era o elo que me ligava a Marcelo eu passei a me dizer encantado por ele e pela atenção que ele me dava, me fiz de apaixonado, dizia que meus sentimentos haviam em relação a Marcelo e que ele, o primo, era a pessoa que eu queria ao meu lado e... como num passe de mágica a guarda se abriu. Passei a reunir provas como, fotos, mensagens de texto, e-mail, houve até um contato telefônico onde o primo soltou o verbo, embora ele tentasse maquiar sua voz  eu pude comparar orações, entonação de voz e constatei que Marcelo era o primo.

A partir dessa espécie de dossiê as avessas eu fiz um ultimo e decisivo contato com o tal primo, colocando-o contra a parede ele confessou a autoria do perfil fake e confidenciou estar apaixonado por mim, acompanhar tudo o que escrevia em meu blog e a partir daí tentar se aproximar.  Houve ainda a tentativa de explicação na qual ele justificou-se, disse que Marcelo de fato havia existido, vítima de câncer no estomago o rapaz veio a falecer em novembro de 2013. A partir daí, na tentativa de se aproximar de mim o primo se apropriou do karma de Marcelo e me envolveu naquela triste situação. Para provar a veracidade da existência do verdadeiro Marcelo, o primo se dispôs a me levar em seu tumulo. Mas de que adiantaria mais esse sofrimento? Eu de fato queria que Marcelo tivesse existido em minha vida, mas ir ao seu tumulo só me faria sofrer ainda mais, ver vestígios de alguém a quem eu considerei um dia não mudaria a decepção que eu sentia diante de tudo.

A verdade também é algo libertador, e a verdade era o que eu precisava para por um fim naquela história. Sem rodeios exigi que o primo se afastasse de mim ou eu o denunciaria por crime de falsidade ideológica e apresentaria todo material que reuni, incluindo sua confissão. Felizmente pude encerrar esse capitulo de alma lavada. Sepultei o lapso de sentimento que construí em torno da existência de Marcelo, e com ele Eduardo também seria sepultado na certeza de que adormeceria para sempre.


RECOMEÇO

Com uma mochila nas costas e uma pequena mala , eu deixei o apartamento de Eduardo White. Repassei o imóvel a outro rapaz que se prontificou a cumpri o contrato até janeiro de 2015, data em que devo retornar a São Paulo para me desfazer da mobília e entregar o apartamento para imobiliária. De volta ao ninho, a casa de minha mãe, eu voltei a viver em meu pequeno quarto. Eu precisava recomeçar... E assim o fiz...

Hoje, passado mais de cem dias desde que resolvi sepultar Eduardo, consigo analisar a decisão que tomei com mais distanciamento.  O suposto cliente que não passou de um fake, mesmo me fazendo sofrer foi um dos responsáveis pela minha libertação. Eu havia criado a coragem necessária a partir dele, pude sair da prisão a qual eu havia me condicionado, como uma grande ironia da vida muitas vezes a libertação acontece depois de um calvário de sofrimento...

As coisas que aconteceram depois pareceram encaminhadas por Deus, ou por algo maior. Eu estava de volta a minha casa, consegui um bom emprego em minha área, comprei um carro (mais ainda to praticando), me matriculei em minha tão esperada pós graduação e venho buscando outros objetivos. Não tem sido fácil, por vezes me pego desanimado com uma coisa do passado ou frustrado por ter direcionado minha vida a outros rumos, mas por mais que temos escolhas e que os caminhos não nos agrade e não seja bem como esperávamos, há sempre um aprendizado adquirido.
Claro que não é fácil, é uma desintoxicação que acontece dia após dia, mas eu estou determinado a continuar trilhando meu caminho em busca de algo que eu considere bom para minha paz de espírito. As cicatrizes ainda continuam, ora latentes ora neutras... Eu ainda desejo muitas coisas para minha vida.

Não sei se ainda voltarei aqui para contar como vou indo, se vou escrever memórias ainda não contadas como Eduardo White, porém, a única certeza que tenho é que crescer de fato dói e sei que Eduardo ainda vaga por algum lugar dentro de mim. Com ele busco selar um acordo de paz. Não quero que ele volte a reger minha vida, mas também não posso nega-lo.

White faz parte do meu eu mesmo e irei carrega-lo como parte de minha história. Eu ainda não estarei livre de errar, afinal, o ato de errar faz parte da vida, do amadurecimento... Errar e contemplar buscando sabedoria nos faz melhores  do que fomos no dia de ontem.



O garoto errado